Escutar o rio, escutar as mães: Tapajós e a cena feminista da catástrofe
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| Foto: Anouk Maupu |
No palco do Sesc Avenida Paulista, Gabriela Carneiro da Cunha aprofunda uma pesquisa de mais de uma década sobre rios em situação de catástrofe. A peça Tapajós se apresenta como desdobramento de uma escuta política e poética onde o teatro se mistura à investigação documental, à memória coletiva e ao ritual.
No início, ainda no foyer, as atrizes convidam algumas mulheres mães. Entro nesse pacto sem saber o que me aguarda. Recebo apenas a promessa de uma festa, um convite lúdico que contrasta com o peso que a cena irá carregar. Antes do público adentrar o teatro, somos - nós, as mães convocadas - alocadas em lugares demarcados, como testemunhas, cúmplices. Nesse gesto de deslocamento, de espectadora a participante, o espetáculo já anuncia sua política: ninguém está ali apenas para assistir.
O centro é a denúncia da contaminação por mercúrio, devastação que atinge peixes, corpos indígenas, águas e futuros. Para tornar-se dramaturgia, incorporada como voz do rio e de suas gentes, uma certa didática é necessária, nomeando o extrativismo capitalista e colonial como agente da catástrofe.
Ao longo da performance, as atrizes entregam para as mães bacias enquanto maceramos ervas. O cheiro fica impregnado nas mãos apontando cuidado, memória e ritual. O corpo se torna o lugar da escuta, da denúncia e da cura. Outras vezes, é o público inteiro que participa, segurando cartazes de fotografia. A encenação busca dissolver a fronteira entre cena e plateia, convertendo o teatro em laboratório coletivo. A iluminação, violenta e ofuscante, obriga os olhos a recuar. Assim como o mercúrio cega e intoxica, também a luz em excesso nos impõe um limite. A cena, assim, provoca um desconforto momentâneo.
Há em Tapajós um deslocamento fundamental: a dramaturgia se recusa a ser antropocêntrica. Gabriela nomeia o processo de “tramaturgia”, tecendo múltiplas vozes — humanas, não humanas, espirituais — em um tecido de resistência. Esse gesto de descentralização é também um gesto feminista: desmontar a narrativa única, abrir espaço para polifonias e insurgências. A presença constante de água e líquidos, como eixo dramatúrgico alarga a noção de maternidade para além da biologia, entendendo que ser mãe é criar e sustentar vida em sua multiplicidade, gesto que pode ser encarnado por qualquer corpo. Trata-se de um feminismo da interdependência, em que a criação não é apenas reprodutiva, mas também política, cósmica e ecológica.
O recurso à fotografia e ao laboratório de revelação analógica, ao lado de tecnologias digitais, evita o lugar-comum da representação indígena como figura arcaica. Ao contrário, o trabalho encena encontros entre diferentes temporalidades e saberes, em que as tecnologias indígenas e urbanas se entrelaçam. Não há exotização, há composição crítica: modos diversos de existir e resistir compartilham a cena. O mercúrio, capaz de revelar o ouro e matar o rio, aqui revela imagens, abrindo possibilidade de ressignificação. A substância da destruição torna-se também matéria de criação, numa dialética em que o teatro propõe reverter o envenenamento em encantamento.
Se a catástrofe é efeito direto do capitalismo extrativista e colonial, Tapajós responde com tecnologias ancestrais de cura e com uma rede de mulheres e rios. No desfecho, as mães que entraram no foyer antes do público são chamadas ao palco. Quase de mãos dadas, revelamos uma fotografia nossa feita no início da peça. Esse gesto final é também política da memória: lembrar que estávamos ali desde o começo, como testemunhas e como corpos convocados. A fotografia nos devolve a nós mesmas, mas também nos devolve ao rio e às vozes que se perderiam se não fossem escutadas. É lembrança, denúncia e futuro.
Tapajós se apresenta como um pacto entre mães, corpos e águas. Ensina o público a escutar o rio, a reconhecer a violência colonial inscrita no garimpo ilegal e a imaginar futuros que escapem da lógica do lucro e da morte. No gesto de transformar a sala de teatro em terreiro de escuta, Gabriela Carneiro da Cunha nos lembra que resistir é, antes de tudo, devolver voz às margens — sejam elas mulheres, rios ou povos.
Ficha Técnica
Concepção e direção: Gabriela Carneiro da Cunha e o Rio Tapajós
Com: Gabriela Carneiro da Cunha e Mafalda Pequenino
Criação em processo: Sofia Tomic, João Freddi, Vicente Otávio, Mafalda Pequenino e Gabriela Carneiro da Cunha
Assistência de direção: Sofia Tomic
Fotografias: Gabriela Carneiro da Cunha, Vicente Otávio e João Freddi
Técnica fotográfica: João Freddi e Vicente Otávio
Edição de imagens: Gabriela Carneiro da Cunha, João Freddi, Marina Schiesari, Sofia Tomic e Vicente Otávio
Edição de texto: Manoela Cezar, Gabriela Carneiro da Cunha, João Marcelo Iglesias e Sofia Tomic
Dramaturgia: Alessandra Korap, Maria Leusa Munduruku, Ediene Munduruku, Cacica Isaura Munduruku, Ana Carolina Alfinito, Paulo Basta, Julia Ferreira Corrêa, Rosana Farias Mascarenhas, Dalva de Jesus Vieira, Osmar Vieira de Oliveira, Celiney Eulália de Oliveira Lobato, Rodrigo Oliveira, Mauricio Torres e Eric Jennings
Tradução Munduruku-Português: Honesio Dace Munduruku
Direção técnica e iluminação: Jimmy Wong
Assistente de iluminação: Matheus Espessoto
Som: Felipe Storino
Técnica de som e criação multimídia: Bruno Carneiro
Figurinos: Sioduhi
Cenografia: Sofia Tomic, Ciro Schu e Jimmy Wong
Cenografia da exposição: Marina Schiesari
Consultoria: Raimunda Gomes da Silva, Dinah de Oliveira e Tomás Ribas
Apoio e parcerias: Associação Fotoativa e Clube do Analógico
Assessoria de imprensa: Canal Aberto - Márcia Marques, Daniele Valério e Flávia FontesAdministrativo/Financeiro: Alba Roque e Tárik Puggina
Produção Associada: Associação de Mulheres Munduruku Pariri e Associação Sairé
Produção no território: Carolina Ribas
Produção: Ariane Cuminale e Yara Ktaish
Produção geral: Gabi Gonçalves
Realização: Sesc
Produção geral: Corpo Rastreado, Aruac Filmes, Théâtre Vidy-Lausanne e Projeto Margens
Distribuição na Europa: Théâtre Vidy-Lausanne
Coprodução: Théâtre Vidy-Lausanne, Wiener Festwochen | Frei Republik Wien, Festival d’Automne à Paris, Les Spectacles vivants – Centre Pompidou (Paris), Halles de Schaerbeek, Kunstenfestivaldesarts (Bruxelas), La rose des vents – scène nationale Lille Métropole – Villeneuve d’Ascq / Next festival, Théâtre Garonne (Toulouse), International Summer Festival Kampnagel
Apoio à pesquisa e desenvolvimento: Manchester International Festival

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