Nós, Xs Culpadxs: Entre o drama e o épico

    
Foto: Mari Chama

       xs CULPADXS é o tipo de peça que se faz questão de recomendar. Daquelas que despertam interesse genuíno em públicos diversos, por isso vem atravessando temporadas com tanto êxito. Mas esse sucesso não se deve apenas à popularidade: há ali um trabalho dramatúrgico e cênico vigoroso, que articula com inteligência diferentes planos de leitura, provocando tanto afeto quanto pensamento.

    O enredo acompanha a chegada de uma família à zona rural de uma cidade pequena, em meados da década de 1980. Com o passar dos dias, os moradores da região começam a desconfiar que os recém-chegados estejam trazendo consigo uma doença altamente contagiosa. O clima de desconfiança rapidamente se transforma em paranoia coletiva. O que se segue é uma sucessão de equívocos, linchamentos morais e físicos, perseguições e mortes. Ao mesmo tempo, uma segunda camada narrativa se desenha: os próprios intérpretes interrompem o andamento do espetáculo em alguns momentos para discutir o que está sendo encenado, como se quisessem sabotar a lógica do drama tradicional e criar espaços de reflexão sobre os sentidos do teatro hoje.

    A peça apresenta narrativas em camadas. A princípio, parece tratar-se de uma distopia situada no passado: uma pandemia em pleno ano de 1988. Imaginamos como famílias, escolas e instituições lidariam com o medo da contaminação num tempo sem internet, sem redes, sem os simulacros de conexão que nos acompanharam (e, em alguma medida, nos aliviaram) durante a pandemia de 2020.

    Com esse primeiro olhar, senti que a encenação queria revisitar uma geração, talvez acusá-la, talvez compreendê-la. A geração de crianças dos anos 80, criadas num modelo autoritário, onde a obediência valia mais do que a escuta, e onde os desejos infantis eram constantemente silenciados em nome do conforto e das decisões adultas. Eu sou fruto dessa década — e vejo meus pares, e a mim mesma, marcadas por essa educação pouco afetiva, invasiva e, não raro, violenta.

    Nesse momento, a peça parece nos perguntar: quem é culpado por essa herança emocional que carregamos? Por essa geração de quarentonas e quarentões que ainda lutam para compreender suas emoções mais básicas?

    Quando a tragédia se instala, revelando a estrutura do “dramalhão”, a pergunta se amplia: afinal, quem é culpadx pela morte das personagens? Quem trouxe o vírus? Quem matou quem e por quê? E, se a pessoa acusada não sente culpa… ela ainda é culpada?

    É nesse ponto que a peça mergulha numa investigação mais filosófica, quase psicanalítica, sobre o conceito de culpa. Uma culpa que se esparrama como vírus, que contamina estruturas, que atravessa tempos.

    A trilha sonora, composta por músicas sertanejas femininas de diferentes décadas, potencializa essas camadas. Cria atrito, ironia, melancolia. Às vezes, reforça uma memória afetiva; outras, produz tensão. E há momentos de envolvimento coletivo quando o público canta junto, se anima, se identifica, reativa lembranças. Essa fricção entre o trágico e o popular, entre a violência e o refrão, torna-se um recurso potente, pois jamais é gratuita. A música evoca modos de amar, de acusar, de se ressentir, que atravessam o texto como fios invisíveis.

    Outro acerto da montagem está na costura entre o drama e a metalinguagem. A peça se desdobra sobre si mesma. As personagens, em determinados momentos, abandonam suas funções dramáticas e se dirigem diretamente ao público, instaurando um distanciamento épico que mais do que romper a ficção, nos convoca a uma escuta reflexiva. Há uma espécie de intimidade crítica, como se a cena dissesse: “olhe mais fundo, pense comigo, repare nos mecanismos.”

    Na minha leitura, a peça propõe que a culpa é difusa, múltipla, estrutural. Ela é da família, da escola, de quem nos criou nos anos 80. E é também de quem negligenciou cuidados durante a pandemia. É do Estado, da necropolítica, do capitalismo que nos fragmenta e nos exige produtividade até mesmo diante da morte. A peça acerta, portanto, ao apontar para todos os lados porque mais do que buscar xs culpadxs, nos propõe a inquietação de sermos nós mesmxs quem se procura.

    O cenário, assinado por José Valdir Albuquerque e Carlos Canhameiro, é um espetáculo à parte: orelhão, bar, escadas e ambientações que resgatam visualmente os anos 80 com precisão e sensibilidade. O uso do espaço em dois níveis (o bar abaixo, os músicos acima ) permite uma convivência simultânea entre ficção e comentário, entre ação e música.


Foto: Mari Chama


    A atuação é afinadíssima: Daniel Gonzalez, Marilene Grama, Nilcéia Vicente, Yantó, Rui Barossi e Paula Mirhan contracenam com rigor, ritmo e uma entrega que não busca fácil comoção, mas sim a construção densa de atmosferas, de subjetividades e contradições.

    Carlos Canhameiro, vencedor do Prêmio Shell de Dramaturgia em 2023 com esse texto, reafirma aqui sua trajetória como um dos nomes mais inventivos da cena paulistana contemporânea. Sua dramaturgia tem peso, mas também jogo; tem dor, riso, política e poesia.

    xs CULPADXS é um daqueles espetáculos que nos fazem sair do teatro com mais perguntas do que respostas. E a pergunta principal que fica é: somos nós, os culpadxs?


FICHA TÉCNICA
Encenação e dramaturgia: Carlos Canhameiro
Elenco: Daniel Gonzalez, Marilene Grama, Nilcéia Vicente, Yantó, Rui Barossi e Paula Mirhan
Trilha Sonora e música ao vivo: Paula Mirhan, Rui Barossi e Yantó
Cenário: José Valdir Albuquerque e Carlos Canhameiro
Figurinos: Bianca Scorza (acervo Godê)
Técnico de som: Pedro Canales
Técnico de luz: Cauê Gouveia
Produção: Corpo Rastreado
Assessoria de imprensa: Canal Aberto - Márcia Marques e Daniele Valério

Prêmio Zé Renato de Teatro - Prefeitura de São Paulo

SERVIÇO
xs CULPADXS
Duração: 90 min | Classificação: 14 anos
Teatro Arthur Azevedo
Data: 10 a 27 de julho, quinta a sábado, às 21h e aos domingos, às 19h.
Endereço: Av. Paes de Barros, 955 - Alto da Mooca, São Paulo - SP
Ingressos: Gratuitos | Retirada com 1 hora de antecedência



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