O Vestígio da Subversão Feminina: O Grotesco na Cena do Kaus

 

Foto: Cuca Nakasone


Nos palcos da tradição canônica, a mulher, enquanto personagem e atriz, costuma ser confinada a um papel ornamental: bela, dócil, destinada ao olhar masculino. As Três Velhas, montagem da Cia Teatro Kaus a partir do texto de Alejandro Jodorowsky, rasga essa moldura. Aqui, a mulher não está para ser vista sob a luz da delicadeza; está para ser olhada em sua inteireza. O visagismo ousado, o figurino que recusa padrões e a fisicalidade das atrizes Amália Pereira, Tânia Granussi e Vera Monteiro compõem uma estética que desloca a expectativa do “ser mulher” no palco, desestabilizando o olhar habituado a enquadrá-las.

O espetáculo mergulha no grotesco sem hesitar enquanto as três personagens se desenvolvem em igual medida, sem protagonismos, e a narrativa se sustenta nesse jogo de intensidades. A casa decadente onde vivem torna-se palco de memórias distorcidas, jogos cruéis e lembranças que misturam juventude e decrepitude. Nesse espaço-limite, o riso e o horror coexistem, e o grotesco não é mero ornamento: é linguagem e é política.

A encenação encontra no diálogo entre cenário, luz, atuação, visagismo, figurino e direção uma rara sintonia. Cada camada se mantém com valor próprio, mas é no entrelaçamento que elas ganham potência máxima, criando um organismo cênico harmônico.

O elenco entrega uma performance rara. As atrizes transitam com precisão entre o animalesco, o teatro do absurdo e ecos artaudianos, sustentando o jogo grotesco do início ao fim. Entre risos e estremecimentos, modulam intensidades com virtuosismo, conduzindo a espectadora pelo ritmo e pela evolução da peça, tornando cada instante simultaneamente inquietante e fascinante. Amália Pereira merece menção especial: hipnótica, constrói Meliza em três registros distintos – a irmã, a filha diante do pai, e o próprio pai – e transita entre eles com precisão minuciosa, deixando que o olhar, o timbre ou um simples gesto no tecido revelem a metamorfose.

A direção de Reginaldo Nascimento reafirma sua assinatura: a precisão nas marcações, a iluminação como dramaturgia paralela, e um domínio do espaço que guia o olhar do público. A criação luminosa de Denilson Marques merece destaque, pois não apenas acompanha, mas tensiona e expande a narrativa. Há ainda de se enaltecer a reafirmação de uma linha estética na qual o grupo trabalha há anos, sem que isso soe como repetição, mas como reencontro com uma pulsação própria.

Ao longo de toda a montagem, As Três Velhas imprime o vestígio de uma subversão feminina que atravessa o olhar do público. A peça é um convite ao desconforto e ao riso nervoso, à contemplação do grotesco não como deformidade, mas como resistência estética e política. No desfecho, um toque de modernidade irrompe quando as personagens dialogam com a lógica das redes sociais, revelando nuances contemporâneas sem diminuir a potência subversiva que percorre toda a encenação.

FICHA TÉCNICA
Autor: Alejandro Jodorowsky
Tradução: Aimar Labaki
Direção: Reginaldo Nascimento
Elenco: Amália Pereira, Tânia Granussi e Vera Monteiro
Cenário: Reginaldo Nascimento
Figurinos: Telumi Hellen
Visagismo: Louise Helène
Desenho de luz: Denilson Marques
Sonoplastia: Reginaldo Nascimento
Técnico operador de luz: Giovanni Matarazzo
Técnico operador de som: Giovana Carneiro
Técnico de palco: Leandro Gomes
Interpretação em libras: Sabrina Caires
Direção de produção: Reginaldo Nascimento
Produtora executiva: Amália Pereira
Assistente de produção: Giovana Carneiro
Realização: Teatro Kaus Cia Experimental
Produção: Kaus Produções Artísticas
Fotos: Cuca Nakasone
Assessoria de imprensa: Canal Aberto - Márcia Marques, Daniele Valério e Flávia Fontes

SERVIÇO
As Três Velhas
Duração: 70 minutos Classificação: 16 anos

TEATRO ARTHUR AZEVEDO
Data: 14 a 24 de agosto, de quinta a sábado, às 21h, e, aos domingos, às 19h
Endereço: Av. Paes de Barros, 955 - Alto da Mooca
Ingresso: gratuito | Retirar na bilheteria com 1 hora de antecedência
Telefone: (11) 2604-5558
Acessibilidade: o espaço possui acessibilidade para cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida
OBS: Dias 15 e 22 de agosto haverá interpretação em libras

TEATRO CACILDA BECKER
Data: 4 a 14 de setembro, de quinta a sábado, às 21h, e, aos domingos, às 19h
Endereço: R. Tito, 295 - Lapa
Ingresso: gratuito | Retirar na bilheteria com 1 hora de antecedência
Telefone: (11) 3864-4513
Acessibilidade: o espaço possui acessibilidade para cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida
OBS: Dias 05 e 12 de setembro haverá interpretação em libras

TEATRO ALFREDO MESQUITA
Data: 25 setembro a 5 de outubro, de quinta a sábado, às 20h, e, aos domingos, às 19h
Endereço: Av. Santos Dumont, 1770 - Santana
Ingresso: gratuito gratuito | Retirar na bilheteria com 1 hora de antecedência
Telefone: (11) 2221-3657
Acessibilidade: o espaço possui acessibilidade para cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida
OBS: Dias 26 de setembro e 03 de outubro haverá interpretação em libras

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