O tempo político de Veias Abertas: Quando o corpo narra a história

   

  


Fotos: Ligia Jardim


        Veias Abertas 60 30 15 seg, da Aquela Cia, é um espetáculo que logo no início impõe seu ritmo como dispositivo cênico pulsante. A fragmentação dos quadros, que variam entre 15 e 60 segundos, captura uma respiração suspensa e intensa, que não demora a encontrar fôlego. Um espelho do cotidiano frenético, incessante, das capitais sob o domínio do neoliberalismo, essa fragmentação é muito mais que estética; é um corpo pulsante que espelha a urgência e a ansiedade da contemporaneidade.

        Adaptando com inteligência o icônico livro de Eduardo Galeano, As Veias Abertas da América Latina, a peça intercala a narrativa pessoal de casal formado por um militar e um funcionário da United Fruit que se conhecem em aulas de dança e decidem se casar, com a História trágica do Massacre das Bananeiras, de 1928. Esse casamento, que coincide com a repressão brutal à greve que matou mais de dois mil trabalhadores, inscreve o íntimo no campo político, afirmando que tudo é política, sem abrir margem para interpretações distantes ou desconectadas. A articulação entre o íntimo e o histórico atua como um escudo contra leituras conservadoras e despolitizadas que poderiam deslocar a história para um distante “lá e depois”. Ao contrário, o espetáculo nos lembra que essas feridas abertas ainda sangram aqui e agora, num presente cravado em tensão geopolítica e desigualdade estrutural.

        Essa proximidade temporal e espacial exige de nós uma autocrítica e uma reflexão sobre nosso lugar no presente. A peça nos atravessa pela memória e pela urgência da ação, mostrando que os fatos históricos são pulsos vivos que reverberam na contemporaneidade, não relíquias congeladas. A decisão de trazer a História para o palco através da narrativa de amor é um acerto fundamental, pois é na intimidade dos afetos que se revela a potência política da memória.

        A direção, a dramaturgia e a encenação resistem com honestidade às armadilhas do clichê. A utilização das máscaras tradicionais, os figurinos e as músicas não são meros ornamentos, mas componentes essenciais para o equilíbrio da obra. Não há superficialidade no uso desses elementos; ao contrário, eles se somam para criar uma obra que pulsa em verdade, em profundidade.

        Rafael Bacelar, já destacado por seus recentes trabalhos na Companhia Brasileira de Teatro, mostra novamente sua versatilidade e entrega em cena, dialogando com um elenco sólido e comprometido formado por Carolina Virgüez, Juracy de Oliveira e Matheus Macena. Este último impressiona ao interpretar e dançar a canção “Tudo Passará”, de Nelson Ned, uma sequência que se inscreve na memória afetiva da plateia, funcionando quase como um mantra de resistência e esperança.

        Outro instante de grande força simbólica acontece quando a atriz Carolina Virgüez utiliza suas costas como tela para narrar a geografia física da América Latina, transbordando a potência simbólica do corpo como território de memória, um mapa vivo que fala das marcas invisíveis da colonização, da exploração e da luta.


        Veias Abertas 60 30 15 seg é uma obra de arte sincera e necessária. Usa o corpo, o gesto e a palavra para se contrapor ao apagamento e à invisibilização. É uma peça que reafirma o compromisso do teatro com a verdade e a complexidade da experiência humana e política, especialmente a experiência latino-americana atravessada por violências históricas e resistências plurais.

Ficha Técnica:

Direção: Marco André Nunes
Texto: Pedro Kosovski e Carolina Lavigne
Elenco: Carolina Virgüez, Juracy de Oliveira, Matheus Macena e Rafael Bacelar
Músicos: Felipe Storino e Pedro Leal David
Direção Musical: Felipe Storino
Direção de Movimento: Márcia Rubin
Cenário: Aurora dos Campos e Marco André Nunes
Cenógrafa Assistente: Juliana Augusta Vieira
Figurino: Fernanda Garcia
Iluminação: Renato Machado
Iluminador Assistente: Paulo Denizot
Assistente de Direção: Gabriela Ruppert
Assistente de Figurino: Mag Pastori
Operação de luz: Juliana Augusta Vieira
Operação de som: Fabio Luchs
Produção: Corpo Rastreado - Gabi Gonçalves | Nathália Christine
Idealização: Aquela Cia
Realização: Sesc
Assessoria de imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques, Daniele Valério e Carina Bordalo

Comentários