Entre o corpo e a corda: notas sobre Cordeiros | Bienal Sesc Dança 2025

 

Foto: Renato Mangolin

Em Cordeiros, de Alan Ferreira e Tony Hewerton, a corda é linha, fronteira, metáfora e corpo. O espetáculo parte da figura do trabalhador do Carnaval baiano que segura a corda para delimitar o espaço entre a pipoca e o camarote — entre o povo e o privilégio — e transforma esse gesto de contenção em dança, em invenção, em possibilidade de travessia. A obra se inscreve nesse limiar, entre o visível e o invisível, e tensiona as linhas que organizam o mundo.

O silêncio inicial se impõe como uma escuta. Nesse vazio sonoro, os corpos se movem com precisão e força, como se desenhassem na penumbra um território de resistência. Quando a música irrompe, rasgando o silêncio, ela inaugura outra fisicalidade, vibrante, quase ritual. A luz nas cordas revela a beleza dos gestos, amplia a presença dos intérpretes e devolve dignidade ao corpo que historicamente foi posto à margem.

Há algo de profundamente original na forma como Cordeiros transforma a desigualdade social em matéria coreográfica. A obra não ilustra a violência mas a tensiona. A escuridão se torna um espaço de invenção, e a cena das biribinhas, em que os performers mastigam e lançam faíscas uns sobre os outros, é um dos momentos mais intensos da Bienal. No escuro, os estalos cortam o ar e provocam o público — surpresa, medo, encantamento. A violência simbólica se converte em gesto poético, em fagulha, em corpo que insiste em existir.

        Cordeiros é uma dança sobre fronteiras e sobre o desejo de rompê-las. É também uma celebração da vida, das festas, dos trânsitos, das gambiarras que afirmam, a cada lampejo, a potência dos corpos dissidentes e diaspóricos.

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