Adulto: fissuras do amor romântico em cena

 

Foto: Julieta Bacchin 

Em cena, a dramaturgia de Fran Ferraretto, sob direção de Lavínia Pannunzio, arrisca-se naquilo que ainda é tabu: desmontar a ideia de amor romântico e suas amarras sobre a vida adulta. Adulto parte da revelação de um segredo entre João (Iuri Saraiva) e Sara (a própria Ferraretto), mas o que se desenrola está para além do enredo conjugal. O espetáculo se organiza como um campo de tensões onde o machismo, a monogamia, a maternidade, a saúde mental e o dinheiro se entrecruzam, afetando não apenas um casal, mas duas duplas de personagens em constante espelhamento.

O jogo metalinguístico — uma personagem que escreve uma peça enquanto a peça se escreve diante de nós — não se reduz a recurso formal. Ao contrário: a dramaturgia encontra fôlego e consistência ao transpor essa camada para a experiência do público, abrindo espaço para catarse e reconhecimento.

Entre os momentos mais contundentes, destaca-se a cena em que Sara verbaliza o que tantas mulheres foram ensinadas a engolir: o cansaço diante de um companheiro que não se responsabiliza pelo próprio sustento cotidiano, que não cozinha, não lava, não se leva a sério. O jorro de palavras não soa como descarga pejorativa, mas como rasgo de lucidez e, por isso mesmo, catártico. Afinal, quantas de nós não fomos socializadas a servir, cuidar e calar? Mesmo quando compreendemos, através dos feminismos, a urgência de uma voz própria, romper com a lógica que naturaliza a mulher como mãe de outro adulto continua sendo um gesto árduo, atravessado por culpa, silêncio e pela crença social de que é melhor “aguentar um homem” do que envelhecer só.

Esse gesto de fala encontra eco em Paula (Jennifer Souza), que não aceita a conivência masculina. Em cena, quando Vitor (Sidney Santiago Kuanza) tenta suavizar ou defender o comportamento do amigo, Paula o interrompe. Interrompe a palavra, interrompe o ciclo. Nega a broderagem que insiste em perpetuar o machismo sob a máscara da solidariedade masculina. O gesto é simples, mas radical: não deixar que esse movimento tenha continuidade. Todas precisamos de uma amiga Paula, que não só aponte abusos cotidianos, mas ensine, na prática, como eles podem ser interrompidos. Muitas vezes, basta esse corte: não permitir que a fala do homem se erga como justificativa.

A encenação de Lavínia Pannunzio expande o texto ao explorar a não-linearidade temporal, abrindo fissuras que fazem o tempo escorrer entre as cenas. O espaço cênico, concebido por Mira Andrade, mobiliza uma mesa como eixo mutável (casa, palco, arena) em constante transformação. Já a trilha de Rafael Thomazini, composta de ruídos cotidianos e músicas brasileiras, não se limita a criar atmosferas; ela pulsa como parte da ação, incorporada ao ambiente narrativo, como o rádio que toca na festa ou o som quase quebrado de uma máquina de lavar.

O elenco constrói relações de química e atrito. Sidney Santiago Kuanza, em especial, evidencia um domínio técnico raro: na cena em que Vitor surge embriagado, seus olhos avermelhados e a boca molhada compõem uma imagem de realismo visceral, que logo em seguida se desfaz quando o personagem retoma a sobriedade em outro registro corporal. Uma transição quase instantânea, de grande impacto.

O título da peça não é gratuito. Adulto parece ironizar a promessa da maturidade: se tornar adulto, afinal, é lidar com traições, frustrações, desejos, dívidas, comparações e pactos de silêncio. Mas é também, como aponta a dramaturga, encarar a possibilidade de emancipação — sobretudo das mulheres — frente às lógicas que ainda tentam aprisionar a vida íntima.

Assim, o espetáculo se constrói como um rito de reconhecimento coletivo. Ao rir, ao se ver nas disputas, ao testemunhar a coragem de uma fala que rompe séculos de silenciamento, o público é chamado a reavaliar seus próprios pactos afetivos. Adulto não entrega soluções nem fórmulas; ao contrário, abre um espaço de confronto, delicado e duro, onde o amor romântico aparece não como destino, mas como armadilha a ser desfeita.

Ficha Técnica:

Texto e idealização: Fran Ferraretto
Direção: Lavínia Pannunzio
Elenco: Iuri Saraiva (João), Sidney Santiago Kuanza (Vitor), Fran Ferraretto (Sara) e Jennifer Souza (Paula)
Desenho de luz: Gabriele Souza
Trilha sonora e operação de som: Rafael Thomazini
Cenário: Mira Andrade
Figurino: Anne Cerutti
Design gráfico: Murilo Thaveira
Fotos: Julieta Bacchin
Visagismo: Louise Helène
Operação de luz: Carol Dourado
Técnico de montagem: Diego França
Assessoria de imprensa: Canal Aberto – Marcia Marques, Daniele Valério e Carina Bordalo
Estratégia Digital & Social Media: Alexandre Ammano
Gestão de mídias: Enzo Salomão
Direção de produção: Paula Malfatti
Coordenação de produção: FATTO Realizações
Gestão administrativa: Mava Produções
Assessoria jurídica: José Otávio V. de S. Ferreira S.I. Advocacia
Apoio: Oficina de Atores Nilton Travesso, LIVO e Salão Pier A

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