BAQUAQUA: ENTRE ENCONTROS E RESISTÊNCIA




Foto: Noelia Nájara

 

Voltar à sede da Cia do Pássaro e Vôo Livre, na Rua Álvaro de Carvalho, sentar no café e comer um delicioso pedaço de bolo de maçã, já anunciam a experiência de proximidade que se estende também para a cena. A reinauguração da sede foi marcada pela temporada de Baquaqua – Documento Dramático Extraordinário, espetáculo que integra a Trilogia do Resgate e se baseia na autobiografia de Mahommah Gardo Baquaqua, africano escravizado no Brasil que reconstruiu sua vida entre Américas e Caribe, registrando em livro sua trajetória antes de desaparecer misteriosamente.

Se a obra literária traz uma voz singular contra o apagamento, a dramaturgia de Dione Carlos expande essa memória ao tecido poético e crítico da cena. Sua escrita tensiona as feridas da escravidão sem abrir mão da beleza da linguagem, criando imagens que ultrapassam a história individual de Baquaqua e se inscrevem como metáforas do presente. A direção de Dawton Abranches soube transformar essa poesia em cena concreta: as palavras encontram corpo nos atores, que não apenas narram, mas interrogam diretamente a plateia, exigindo de cada espectador respostas íntimas diante da violência exposta.  

Em cena, Alessandro Marba e Breno da Matta se desdobram entre o personagem-título, narradores e figuras de poder, tecendo uma narrativa fragmentada e polifônica que espelha as muitas vozes atravessando a vida de Baquaqua. Alessandro Hernandez, que surpreendera em Jacinta com uma personagem de natureza oposta, reafirma aqui sua versatilidade ao encarnar com vigor as contradições e resistências de Mahommah G. Baquaqua. A interpretação dos dois é marcada por instigante intensidade, ora criando distanciamento, ora nos puxando para dentro da cena com olhares que quebram a quarta parede. O texto de Dione encontra seu prolongamento na fisicalidade e no jogo entre os atores, que fazem da poesia um gesto vivo. A experiência é reforçada pelos detalhes da recepção, como a oferta de cachaça e tâmara, criando uma atmosfera de proximidade e partilha.

O cenário de Pedro de Alcântara, composto por ripas de madeira, evoca um navio negreiro e se transforma em palanque, acompanhando a trajetória do personagem. Os manequins brancos representam alegoricamente Justiça, Liberdade, Religião e Polícia, símbolos do poder que se impõem de forma autoritária,  presenças coloniais que atravessam a narrativa. O desenho de luz de Alice Nascimento, operado por Rebeka Teixeira, foi exemplar: preciso no recorte das cenas, responsável por dar ritmo e densidade às passagens da dramaturgia, convocando emoções do público. A trilha sonora de LP Daniel, mesclando referências clássicas e elementos da música africana, atravessa as cenas como ponte entre tempos, enquanto o repente composto pelos atores amplia a experiência coletiva e popular da encenação.

As atualizações do texto para o presente,  com referências contemporâneas, funcionam como agulhas que costuram o passado à nossa atualidade. O gesto é potente: lembrar Baquaqua é também reconhecer os corpos negros que continuam a ser violentados cotidianamente. 

Baquaqua se conecta diretamente a Jacinta – Você só Morre Quando Dizem Seu Nome Pela Última Vez, segunda peça da trilogia. Enquanto a primeira obra centra-se na trajetória de um homem africano, a seguinte desloca o olhar para uma mulher negra, Jacinta Maria de Santana, cujo corpo foi exposto pela ciência durante décadas. Vistas em conjunto, as duas obras se completam no que revelam de diferentes violências de raça e gênero, afirmando o projeto artístico e político da companhia: retratar vidas e histórias que o racismo tentou silenciar.

Outro ponto relevante está na classificação livre da peça indicando que crianças são bem-vindas. E, onde crianças são bem vindas, mulheres são bem-vindas. Embora não houvesse nenhuma criança na sessão que eu assisti, a classificação, nesse caso, pode também ser um indicativo de abertura para todos os tipos de peça, um convite a assistirem e refletirem sobre os assuntos da peça. Um horário mais acessível para esse público poderia ampliar ainda mais esse alcance, fortalecendo a dimensão social de um grupo que já cumpre, com rigor e sensibilidade, sua função artística. 

Esse gesto de abertura se soma à força da obra,  Baquaqua não se limita a contar uma história do século XIX, mas nos convoca, hoje, a resistir coletivamente, lembrando que a memória só existe quando se transforma em encontro.

Ficha Técnica
Elenco: Alessandro Marba e Breno da Matta
Dramaturgia: Dione Carlos e Dawton Abranches
Direção: Dawton Abranches
Assistência de direção: Dione Carlos
Produção: Plataforma - Estúdio de Produção Cultural
Direção de Produção: Fernando Gimenes
Produção Executiva: Rafael Procópio
Consultoria de pesquisas: Bruno Véras
Cenário e figurinos: Pedro de Alcântara
Costureira e confecção de Abaiomys: Maria de Lourdes Ventura
Trilha sonora: LP Daniel
Composição da música ao vivo: Breno da Matta e Alessandro Marba
Operação de som: Dawton Abranches
Orientação musical e de movimentos: Laruama Alves
Criação de luz: Alice Nascimento
Adaptação e operação de luz: Rebeka Teixeira
Painel e aquarelas: Renato Caetano
Designer gráfico: Murilo Thaveira
Fotos: Noelia Nájera
Redes Sociais: Jorge Ferreira
Assessoria de Imprensa: Canal Aberto - Márcia Marques, Daniele Valério e Flávia Fontes



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