O tempo em carne viva: memória, mulheres e insurgência em Um Grito Parado no Ar
Foto: Divulgação |
Há espetáculos que atravessam a noite como a leitura de um bom livro: atentos, comovidos, tocados por uma beleza feita de forma e história, política e afeto. Um Grito Parado no Ar, apresentado pelo Teatro do Osso no Itaú Cultural, é um desses encontros raros. Com direção de Rogério Tarifa, a peça resgata o texto de Gianfrancesco Guarnieri — escrito em 1973, sob o peso da ditadura militar — e o inscreve no presente com vigor, delicadeza e compromisso coletivo.
A montagem é, antes de tudo, um gesto de homenagem à história do teatro brasileiro. Um chamado à memória viva de grupos, nomes e lutas que atravessaram décadas de repressão, invenção e persistência. Figuras como Augusto Boal, Abdias Nascimento e Renata Pallotini ressurgem em cena com respeito e força simbólica, compondo um arquivo afetivo em movimento. Estamos diante de uma celebração teatral, que ilumina a cena com lampejos de história.
No centro dessa constelação, a presença de Dulce Muniz é o coração pulsante do espetáculo. Aos 77 anos, em tratamento contra o câncer, permanece em cena por quase três horas com uma força que não é apenas resistência — é partilha. Conheci Dulce em 2011, no Studio Heleny Guariba, na Praça Roosevelt. Em 2014, integrei o núcleo do 184 a convite dela. Vê-la agora no palco, compartilhando histórias que já nos confidenciara nos ensaios, foi reencontrar as sementes que muitas de nós carregamos nos corpos e nas palavras. Presença que não requer destaque: é fundação, é chão que sustenta o agora.
A montagem traz ao presente certas figuras atualizadas, como o personagem que hoje ecoa o perfil de um “redpill” — reconhecível nas redes e no discurso conservador contemporâneo. Ainda assim, a dramaturgia carrega marcas de sua época, mantendo uma estrutura hierárquica em que o poder criativo é centralizado em figuras masculinas: o diretor, o autor, os que conduzem. Uma herança da história do teatro que permanece visível no texto, embora não reproduzida de forma acrítica na encenação.
Uma das cenas mais marcantes traz a atriz Isadora Títto refletindo, em cena, sobre a permanência dos corpos femininos no palco. Questiona os olhares lançados sobre a mulher que envelhece em cena, sobre a exposição do corpo, sobre o desejo e a crítica. Ao se identificar como mulher lésbica e com mais de 40 anos, e ao evocar Renata Pallotini como inspiração, ela suspende o tempo. Não há panfleto — há presença, pergunta e coragem. Uma pausa rarefeita e necessária, como quem retoma o fôlego coletivo para seguir.
Compondo o coro cênico, vocal e social da peça, há uma vibrante diversidade de trajetórias e presenças. Entre as vozes que atravessam o espetáculo estão Dan Nonato, Thiego Torres, Ísis Gonçalves, Marcela Reis, Nduduzo Siba, Rommaní Carvalho, Sofia Lemos e Wilma Elena. São artistas que trazem consigo experiências plurais: uma mulher preta africana, sobrevivente do sistema carcerário; um pedreiro que sonhava ser ator; duas participantes do movimento secundarista; uma arte-educadora com longa vivência na escola pública; entre outras personalidades que tensionam e ampliam o sentido do coletivo em cena. O coro, nesse contexto, não é mero pano de fundo: é matéria viva da cena. A montagem o inscreve como presença política, afetiva e poética. Ao reunir essas histórias, rompe com hierarquias tradicionais de representação e afirma um teatro feito com as margens — e não apenas sobre elas. Um teatro que não apenas encena, mas partilha — e, nesse gesto, reinventa o comum.
A música é, sem dúvida, um dos pontos altos do espetáculo. A trilha atravessa a cena com beleza e potência, sustentada por um coro diverso, que amplia os sentidos do texto e atualiza sua escuta. Não há nostalgia passiva: há memória entrelaçada por vozes que cantam e contam, com olhos voltados para o porvir.
Em um momento de forte ressonância política, há uma menção à ameaça de despejo sofrida pelo Teatro de Contêiner, promovida pela prefeitura de São Paulo sob a gestão autoritária de Ricardo Nunes. A peça costura assim passado e presente, mostrando que os gritos interrompidos pela censura seguem ecoando por outras vias, com novos nomes e novas formas de repressão — e de resistência.
Saí da sala como quem reencontra suas próprias anotações de margem: feliz por rever personagens e momentos da história do teatro que habitam minha pesquisa, minha prática e minha trajetória. Como espectadora, como artista, como feminista, senti que ali havia algo mais que teatro: havia história, havia coragem, havia continuidade. E Dulce, no centro de tudo, como uma estrela que não precisa mais de holofote — porque é feita de fogo antigo, daqueles que seguem acesos mesmo depois do ato final.
FICHA TÉCNICA
Direção: Rogério Tarifa.
Dramaturgia: Jonathan Silva, Rogério Tarifa e Teatro do Osso.
Direção de Atores: Luis André Cherubim e Rogério Tarifa.
Texto original: “Um Grito Parado no Ar”, de Gianfrancesco Guarnieri.
Elenco: Guilherme Carrasco, Isadora Títto, Maria Loverra, Oswaldo Ribeiro Acalêo e Rubens Consulini.
Atriz convidada: Dulce Muniz.
Coro: Dan Nonato, Thiego Torres, Ísis Gonçalves, Marcela Reis, Nduduzo Siba, Rommaní Carvalho, Sofia Lemos e Wilma Elena.
Iluminação: Marisa Bentivegna.
Direção musical e treinamento vocal: William Guedes.
Composições originais: Jonathan Silva.
Músicos: Gabriel Moreira, Felipe Chacon e Ju Vieira.
Direção de movimento e treinamento: Marilda Alface.
Direção de Arte: Rogério Tarifa.
Cenário: Diego Dac e Rogério Tarifa.
Figurino: Juliana Bertolini.
Desenho de som: Duda Gomes.
Produção Executiva: Carolina Henriques.
Diretor de palco: Diego Dac.
Técnico de Palco: Diego Leo.
Técnica de Luz: Marina Gatti.
Técnico de som: Duda Gomes.
VJ: Lui Cavalcante.
Assistente de Produção: Julia Terron.
Assistente figurino: VI Silva.
Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli.
Fotos: Mauricio Bertolin e Cacá Bernardes.
Registro em vídeo e teaser: Carolina Romano.
Designer gráfico: Fábio Vieira.
Ilustração: Elifas Andreato.
Realização: Teatro do Osso.
Produção: Jessica Rodrigues Produções Artísticas.
Direção de Produção: Jessica Rodrigues.
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