Barco Mundo: uma fábula contra a máquina que devora o tempo

               Barco Mundo: uma fábula contra a máquina que devora o tempo

Imagem: Divulgação


Há espetáculos que não se contentam em entreter. Tocam, sutilmente, o centro nervoso da experiência coletiva. Barco Mundo, do Coletivo de Galochas, é desses. Numa época em que o lucro é a máquina que devora absolutamente tudo: florestas, ritmos, vínculos e até as manhãs com nossas filhas, essa peça atravessa o que é aparentemente comum, aquilo que pulsa no cotidiano, e devolve à cena a possibilidade de imaginar um mundo que ainda resista. Desperta em nós a possibilidade de esperançar!

Em um território verde ainda vivo, animais artistas celebram a vida com música, dança e presença. Até que uma ameaça concreta e ruidosa irrompe: uma máquina implacável, alimentada pela ganância, começa a devorar o mundo. A partir daí, quatro personagens saem em jornada para tentar entender, enfrentar ou talvez reverter essa destruição. O que se vê no palco é menos um conto ecológico e mais um aviso encantado: a floresta é a primeira a cair, mas não será a última. E talvez não haja salvação possível sem escuta, sem canto, sem rebeldia.

A dramaturgia de Rafael Presto se articula com precisão simbólica. Não há um discurso panfletário sobre o capitalismo, mas uma fabulação onde a Máquina do Lucro que destrói a floresta se torna personagem concreta e terrível. Na metáfora lúdica, adultos reconhecem dilemas que nos paralisam: por que temos que trabalhar tanto? por que não podemos estar juntos em casa? As crianças, por sua vez, recebem pistas de um outro tempo possível, onde os bichos fazem música e os guardiões da mata se rebelam.

O que torna essa peça especialmente potente é sua maneira de equilibrar os elementos cênicos com uma estética ética. O cenário se transforma com leveza, sem rebuscamento ou aparato tecnológico que, por vezes, parece querer enganar as crianças, e não imaginar junto a elas. Barco Mundo compõe mundos. Sua simplicidade é coerente com a denúncia que a obra propõe: estamos destruindo a Terra com excesso de complexidade inútil. Os figurinos, que não reproduzem fantasias literais de animais, evocam seus corpos por texturas e cores, compõem uma visualidade que respeita tanto a imaginação infantil quanto a leitura adulta.

As máscaras revelam e ocultam, como nas melhores tradições teatrais. A expressividade dos atores com os rostos parcialmente cobertos aponta para uma tensão entre o humano e o animal, entre o instinto e a civilização que consome tudo.

A trilha sonora, sob direção de Antonio Herci, tem papel essencial na encenação. Não apenas acompanha a narrativa: em muitos momentos, ela a amplia com sensibilidade. Tocada ao vivo, com instrumentações vivas e arranjos que oscilam entre a delicadeza e um ritmo mais pulsante, a música ajuda a compor atmosferas que dialogam com o encantamento, mas também com a tensão do enredo. Costura as cenas com fluidez e colabora para que o espetáculo encontre, no som, um de seus caminhos expressivos.

A direção de Daniel Lopes aposta em uma cena que se constrói com o essencial, em coerência com a ética proposta pelo espetáculo: há contenção, mas não escassez; há simplicidade, sem nunca recair no simplório. Essa escolha de linguagem valoriza o trabalho do elenco — Kleber Palmeira, Wendy Villalobos, Eder dos Anjos e Caroline Oliveira — que transita entre atuação e musicalidade com entrega e escuta. Seus corpos, mesmo mediados por máscaras, mantêm expressividade viva, conectada ao público. É no encontro entre gesto, voz e presença que Barco Mundo firma seu pacto poético com quem assiste.

Se há momentos em que o texto infantiliza demais o discurso, isso não compromete a força geral da peça. Ao contrário, essa escolha revela o quanto as palavras ainda tateiam significados que a música, os corpos e as imagens já estão gritando.

    Enquanto espectadora, o que vejo mais reverberar é a sensação de ter recebido uma resposta. Ou, pelo menos, um alívio. Barco Mundo oferece aquilo que o capitalismo tenta nos subtrair todos os dias: tempo, presença, um mundo comum. A peça não entrega soluções fáceis, mas propõe caminhos simbólicos. Ela se recusa a naturalizar a lógica da destruição e oferece à infância, e àquelas/es que a acompanham, a chance de imaginar a desobediência como esperança.

    Em tempos de devastação, Barco Mundo é um teatro que planta e nutre o desejo de permanecer em comunhão.

Ficha Técnica:
Concepção e Criação: Coletivo de Galochas.
Direção: Daniel Lopes.
Dramaturgia: Rafael Presto.
Elenco: Kleber Palmeira, Wendy Villalobos, Eder dos Anjos e Caroline Oliveira.
Músicos: Antonio Herci (piano e violão), Nina Hotimsky (sanfona) e Rafael Presto (percussão).
Direção Musical, Arranjos e Composições: Antonio Herci.
Figurino, Cenografia e Visagismo: Beá Meira e Laura Alves.
Iluminação: Robson Lima.
Técnica e Operação de Som: JP Hecht.
Operação de Luz: Diego Henrique.
Máscaras: Daniel Lopes.
Técnicos de Palco: Daniel Lopes e Maria d’ Aguirre.
Assessoria de Imprensa: Nossa Senhora da Pauta.
Direção de Produção: Wendy Villalobos.

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