Fracassadas BR: entre corpas que se nomeiam e mundos que colapsam

 O que seria o fracasso, senão um diagnóstico implacável da máquina capitalista? E o que pode o teatro, senão sabotá-la? Fracassadas BR, da Coletiva de Teatro, com direção e dramaturgia de Ave Terrena e Ymoirá Micall, nos convida a mergulhar numa distopia afetiva onde os corpos desviantes se recusam a se encaixar e, por isso mesmo, reinventam suas formas de existir. Uma coletiva que representa um grupo que fracassa em relação aos valores hegemônicos da sociedade neoliberal, mas que, em cena, triunfa na criação de um espaço de acolhimento, potência e resistência.


         Foto: Divulgação 


Logo na chegada, o espetáculo desloca as espectadoras de seus lugares de conforto. Ainda do lado de fora da sala, somos recebidas por personagens que trabalham, comem suas marmitas, atravessam afetos e feridas — a performance do cotidiano já se anuncia como parte do jogo cênico. Ao adentrar o teatro, encontramos uma atmosfera que nos afasta do mundo conhecido: televisores antigos, globo de balada e uma iluminação vibrante nos transportam para uma ambientação futurista, um abrigo em ruínas que nos remete a um santuário das que não se adaptaram.

A narrativa se passa numa espécie de balada abandonada, onde vivem personagens que se recusam a reproduzir os imperativos da engrenagem social. Dissidentes, não desejam ter filhos ou, se os têm, recusam entregá-los ao sistema — metáfora poderosa de uma ordem que exige produtividade, normatividade, submissão. Essas são as fracassadas de um mundo que só reconhece como sucesso aquilo que pode ser medido, domesticado e útil. Mas a cena as afirma em outro lugar: o do excesso, do corpo, do desejo e da recusa.

A direção de Ave Terrena e Ymoirá Micall atua de forma precisa: a peça não se ancora apenas no texto, mas encontra seu ritmo no corpo coletivo. As marcações coreografadas do elenco não soam artificiais; ao contrário, sustentam um coro vibrante que pulsa junto, sem sufocar as individualidades. A dramaturgia se entrelaça com falas individuais que emergem como ondas — ora harmônicas, ora disruptivas — revelando a multiplicidade do grupo em cena.

Há uma cena de grande potência simbólica em que cada artista se apresenta com seu nome e uma breve performance. É um gesto simples, mas politicamente avassalador: corpas que costumam ser silenciadas rompem o silêncio — nomeiam-se, expõem-se, reivindicam seu direito ao palco. É como se, ali, elas finalmente ocupassem o habitat que lhes foi negado pela sociedade. Nomear-se é existir. E existir em cena, com autonomia estética e política, é gesto de afirmação e insurgência.

A iluminação, concebida como elemento dramatúrgico, merece atenção especial. Ela não apenas compõe a ambiência, mas dialoga com as ações, evoca atmosferas, direciona o olhar e, por vezes, age como personagem silenciosa. É nos momentos sem fala, quando os corpos assumem o protagonismo, que sentimos a força dessa luz que escuta — e faz falar o que o texto, por si, não diria. Para muitas de nós, espectadoras, é fácil reconhecer esse gesto: nas nossas vidas, o corpo quase sempre chega antes da palavra.

O figurino, assinado coletivamente, dialoga com cada trajetória das personagens e prenuncia suas transformações. As escolhas de figurino e adereços não operam apenas como elementos estéticos ou funcionais, mas produzem sentido ao longo da narrativa, revelando deslocamentos subjetivos antes mesmo que se consumem na cena. A materialidade dos objetos em cena antecipa e anuncia os movimentos identitários das personagens, instaurando um jogo entre signo e destino, superfície e transfiguração. O cenário colabora com a criação de um mundo à parte — ao mesmo tempo precário e encantado — onde a distopia não oprime, mas incendeia a imaginação.

Essa proposta se reafirma na cena final, quando as personagens se transformam em animais. A metamorfose funciona como resposta radical à exclusão. Se não há lugar para elas entre os humanos domesticados, que se tornem outras formas de vida — menos úteis, mais livres. Diferente do universo distópico do filme O Lagosta, do cineasta grego Yorgos Lanthimos, a qual fui remetida durante essa cena, onde a metamorfose animal é um dispositivo de controle social e heteronormativo, em Fracassadas BR a animalidade emerge como rebeldia. A transformação não ocorre para corrigir um desvio, mas para afirmá-lo. O que vemos é uma fuga inventiva do humano como norma, uma reinvenção de si que atravessa a exclusão e a responde com mitologia própria — onde a dor, ao invés de silenciar, cria linguagem.

O elenco — formado por Alice Albuquerque, Ayô Tupinambá, Bruna Cardoso, Daniela Rocha, Gabrielle Nascimento, Gisele Soares, Lorena Bongiovani, Luísa Helena, Manu Salva, Rafaela França, Talitha Francisco, Thaís Baiana e Yara Ávila — sustenta a cena com vigor e entrega. Corpas diversas, plurais, vibrantes. Cada uma traz ao palco suas camadas, suas histórias, suas cicatrizes. E todas juntas constroem um território compartilhado, onde o fracasso é resignificado como insubmissão.

Fracassadas BR é um grito polifônico que não pede permissão para soar. Um teatro que fala de nós e para nós — mulheres, lésbicas, trans, pretas, periféricas, corpas dissidentes — que cansamos de tentar caber num mundo que não nos quer. Ao invés de tentar consertar essa máquina, o espetáculo nos oferece outra via: sabotar, escapar, inventar. E, quem sabe, dançar sobre seus escombros.


Ficha Técnica

Atuação – Barbara Vitoria, Lucas Madureira, Jota Guerreiro Vilar, Kaiala, Wini Bueno Lippi.
Direção e Dramaturgia – Ave Terrena e Ymoirá Micall.
Direção de Movimento – Zaila.
Direção Musical – Malka Julieta.
Idealização – Barbara Vitoria, Lucas Madureira, Rand Barbosa e Vitoria Lins.
Produção Executiva – A Coletiva de Teatro.
Núcleo Artístico – fracassadasBR (Barbara Vitoria, Lucas Madureira e Wini Bueno Lippi).
Produção Geral – Igor Luís e Paulo Salvetti.
Operação de Som e Assistente de Sonoplastia – Bibi de Bibi.
Iluminação e Operação de Luz – Verena Teixeira.
Cenografia – Su Martins.
Figurino – Kyra Reis.
Assistência de Figurino – Flora Babylon.
Costureiro – Luã Ayo Ayana.
Produção e Confecção de Adereços – Caiô Akotê, Kamala Omobirin e Luccas Caetano.
Preparação Vocal – Palomaris.
Instalação de Vídeo, Captação e Montagem – Cabaça Realiza.
Textos – Criação colaborativa.
Participações Especiais – Andrei Roque, Beatriz Gonçalves, Dama Blackout, Deusa de Souza, Draken Maciel, Elloy Queiroz, Emanuelli Silva, Gael Mariano, Gabrielly Pizatto, Gustavo Barbosa, Larissa Nascimento, Leonardo Bartolomeu, Lucca Dantas, Luka Aron, Pedro Henrique Dias, Riven Oliveira, Scarlet Lee, Victoria Alves, Wiliam Fenício, Yandra Rodrigues [Parceria com as casas de acolhida Casa João Nery e Casa Florescer].
Assessoria de Imprensa – Nossa Senhora da Pauta.
Apoio – Casa de Referência para Mulheres Laudelina de Campos Melo, Ocupação Nove de Julho e IBT.

Faixa Etária – Maiores de 14
Duração – 75 min.


Serviço:
Até 15 de junho de 2025 |
Sexta e sábado às 20h, Domingo às 18h |
R$ 40 / R$ 20
Teatro de Contêiner Mungunzá – R. dos Gusmões, 43, Sta. Ifigênia – São Paulo/SP

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O Vestígio da Subversão Feminina: O Grotesco na Cena do Kaus

O tempo político de Veias Abertas: Quando o corpo narra a história

Nós, Xs Culpadxs: Entre o drama e o épico