Uma Carta Entre Mães: Desafiando o Silêncio do Patriarcado

Foto: divulgação 



Querida Cris,

Ontem, ao assistir à sua peça, senti que estávamos todas ali, compartilhando um espaço que, de tão íntimo, tornava-se coletivo. Sua pergunta – "A quem interessa ouvir a história de uma mãe que perdeu um filho?" – ecoou e se multiplicou naquelas que te ouviam. Pois aqui está uma resposta: interessa a muitas. Interessa a quem carrega marcas invisíveis, a quem já atravessou um luto solitário, a quem entende que a dor não deveria ser confinada ao silêncio.

Seu trabalho ilumina essa ausência imposta. Na sociedade, a gravidez é um acontecimento público, celebrado e reconhecido, mas o luto materno é um fardo individual, muitas vezes oculto. O espetáculo, com sua delicadeza e força, rompe esse pacto de silêncio e transforma a ausência em presença.

Há algo na sua encenação que nos conduz por um fio de dor e beleza sem jamais nos abandonar. A interação com os objetos de cena é precisa: cada elemento carrega memórias e se torna extensão do seu próprio corpo. As imagens projetadas são um respiro e um abismo – ora nos amparam, ora nos fazem cair junto com você. E há algo de comovente na sua escolha de não olhar diretamente para elas, como se preservar-se também fosse um ato de resistência.

A relação com o público é um convite à escuta e à partilha. Há um instante em que se dissolve a fronteira entre palco e espectadoras, entre sua dor e a nossa. Nesse momento, compreendemos: essa é uma história que pertence a todas nós.

Alguém me disse, após a peça, que talvez o espetáculo não tivesse "apelo" para atrair público. Respondi sem hesitar: "E justamente por isso, precisa existir". Ainda esta manhã, lendo Iris Smith, deparei-me com um pensamento que me fez lembrar de você: para públicos confortáveis dentro de uma ideologia patriarcal, é difícil enfrentar um dilema que não seja essencialmente masculino.

Há temas que incomodam porque revelam a injustiça de gênero com a qual muitos se fazem cúmplices. Sua peça nos lembra que o teatro não deve apenas confortar; ele também precisa inquietar.

A metáfora final, tão delicada, encerra o espetáculo sem fechar a ferida – pelo contrário, ela se mantém aberta, viva, pulsante. Seu trabalho não oferece respostas fáceis, mas nos dá a permissão de olhar, de sentir e de partilhar. E isso, Cris, é um gesto imenso.

Obrigada por nos lembrar que algumas dores precisam ser ditas.

Com admiração,

Poliana Piteri.


(ESPECIAL MiT - SP 2025)


Sinopse

Em 2008, Cris Moreira deu à luz a gêmeos e perdeu um dos filhos, Francisco, com apenas dois dias de vida. Nesta palestra-performance, a artista mineira utiliza dispositivos documentais e audiovisuais para reviver o próprio luto e abordar a invisibilização da dor numa sociedade que trata a gravidez como pública, mas a perda da criança como algo privado. Questionando quem quer ouvir uma mãe que fala sobre a morte, a obra amplia o debate sobre a maternidade e a solidão em torno do luto parental.

Ficha Técnica

Direção, dramaturgia e atuação/performance: Cris Moreira
Colaboração artística: Andreia Quaresma, Babi Amaral e Talita Braga
Direção de texto: Ana Hadad
Iluminação: Marina Arthuzzi e Cristiano Oliveira Araújo
Cenário e figurino: Marina Sandim
Criação audiovisual: André Veloso
Trilha sonora original: Daniel Nunes
Coordenação de produção: Cris Moreira – Esparrama!
Produção executiva: Luísa Monteiro
Programação visual: Tiago de Macedo – Estúdio Ofício

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