O desejo sem prazo de validade: a descontraída celebração da velhice em cena

Foto: Divulgação 

 

O que acontece com o desejo quando os corpos envelhecem? Como a sociedade determina quem ainda pode amar, quem pode sentir prazer, quem tem permissão para existir fora das funções que lhe impuseram? A Vida Secreta dos Velhos, de Mohamed El Khatib, responde a essas perguntas com leveza, provocação e um humor que desafia interditos. Sobre o palco, a velhice se faz presença: plena, irreverente, pulsante.

O espetáculo traz à tona histórias de corpos que recusam o apagamento social . Pessoas que descobrem o prazer depois de uma vida de silenciamentos, que encontram o amor quando já se esperava delas apenas resignação, que escolhem seus afetos pelo desejo e não pela convenção. São relatos que desconstroem a ideia de que a velhice é um tempo de espera, uma antessala da morte. Aqui, ela se impõe como espaço de reinvenção, um território que, embora cercado por interditos, segue fértil em descobertas.

A encenação não se apoia em estereótipos que reduzem os velhos ao cômico ou ao grotesco. O riso que atravessa a peça não vem da condescendência, mas da liberdade de quem, ao se reconhecer na margem, se permite desafiar os limites do que lhe foi negado. Entre confidências, ironias e silêncios que pesam, a peça escancara o erotismo da velhice, uma dimensão que a sociedade insiste em ignorar – sobretudo no que diz respeito às mulheres, cujos corpos sempre foram vigiados e moldados pelo tempo alheio.

E há também as histórias que doem. Como a do casal de idosos que, ao se apaixonar, vê seu amor interditado pelos filhos. O que para os mais jovens soa pode soar absurdo, o poder do encontro afetivo, amoroso e sexual, revela-se o direito mais elementar: estar vivo, sentir, querer. Mas o amor cerceado cobra seu preço. Como Julieta, recusando um mundo onde o amor lhe é arrancado à força. Na peça, essa dor se desdobra em cena. Como em Shakespeare, um amor proibido se inscreve na tragédia. Mas aqui, não há um príncipe benevolente que restabeleça a ordem. Só o eco da injustiça e o silêncio do tempo que não se pode reverter.

A peça fala também da morte – e fala rindo. Porque a morte não é tabu ali. Ela é lembrança, é piada, é uma presença que caminha ao lado do desejo. O espetáculo ressalta os que partiram sem enclausurá-los na solenidade do luto. Porque, se há algo que a velhice ensina, é que é preciso rir do inevitável.

Nada em A Vida Secreta dos Velhos é ingênuo. A leveza da dramaturgia se equilibra sobre um rigor quase invisível, um ritmo que dá à encenação o frescor de um improviso, mas que carrega a marca de quem ensaiou exaustivamente para que tudo parecesse natural. Como se estivéssemos abrindo um velho livro de segredos e, página a página, descobrindo um mundo que sempre existiu, mas que nos disseram ser impossível.

A peça não romantiza a velhice, tampouco a trata como um fim sofrível. Ela a reivindica como um território de luta, um espaço onde o desejo resiste ao tempo e à norma. Não é sobre "envelhecer bem" dentro das regras de um mundo que descarta corpos quando eles já não servem. É sobre envelhecer sem pedir licença, sem abrir mão do prazer, sem aceitar que o desejo tenha data de validade.

A Vida Secreta dos Velhos
TÍTULO ORIGINAL: La Vie Secrète des Vieux
ARTISTA: Mohamed El Khatib

Sinopse

Questionando se o envelhecimento marca o fim do desejo, a obra documental do encenador Mohamed El Khatib desafia ideias preconcebidas sobre a terceira idade. Fruto de uma série de entrevistas realizadas pelo artista em casas de repouso na França, o espetáculo constrói um retrato plural e lúcido sobre a reinvenção da sexualidade na velhice, com seus ritmos e tempos próprios. Em cena, oito idosos confidenciam suas intimidades, refletem sobre experiências amorosas do passado e do presente e mostram que o desejo pode se manter inversamente proporcional à fragilidade de seus corpos e às expectativas da sociedade.

Ficha Técnica

Concepção e realização: Mohamed El Khatib

Com: Annie Boisdenghien, Micheline Boussaingault, Chille Deman, Jean-Pierre Dupuy, Yasmine Hadj Ali, Nicole Jourfier e Salimata Kamaté

Dramaturgia e coordenação artística: Camille Nauffray

Cenografia e colaboração artística: Fred Hocké

Vídeo: Emmanuel Manzano

Som: Arnaud Léger

Direção de produção: Gil Paon

Coordenação geral: Jonathan Douchet

Coordenação de turnê: Madeleine Campa e Cléo Debernardi

Coordenação de legendagem: Zacharie Dutertre

Coordenação artística em turnês: Mathilde Chadeau

Produção: Zirlib

Coprodução: Festival d’Automne à Paris, Points Comuns – Nouvelle Scène Nationale Cergy-Pontoise-Val d’Oise, Théâtre National Wallonie-Bruxelles, La Comédie de Genève, Théâtre National de Bordeaux en Aquitaine, Théâtre National de Bretagne (Rennes), Tandem Scène Nationale d’Arras-Douai, MC2: Grenoble Scène Nationale, La Comédie de Clermont-Ferrand Scène Nationale, Théâtre Garonne Scène Européenne (Toulouse), Festival d’Avignon, Théâtre du Bois de l’Aune (Aix-en-Provence), Équinoxe Scène Nationale de Châteauroux, Théâtre de la Croix-Rousse (Lyon), La Coursive Scène Nationale de La Rochelle, Espace 1789 – Saint-Ouen, Théâtre de Saint-Quentin en Yvelines Scène Nationale e Le Channel – Scène Nationale de Calais

Residência artística: Le Mucem – Marseille, CIRCA La Chartreuse

Zirlib é conveniada pelo Ministério da Cultura – Drac Centre-Val de Loire, pela região Centre-Val de Loire e conta com o apoio da cidade de Orléans

Mohamed El Khatib é artista associado ao Théâtre de la Ville de Paris, ao Théâtre National de Bretagne de Rennes, ao Théâtre National Wallonie-Bruxelles e ao tnba – Théâtre National Bordeaux Aquitaine

ESTE ESPETÁCULO É APOIADO PELO INSTITUT FRANÇAIS PARIS E PELO CONSULADO GERAL DA FRANÇA EM SÃO PAULO

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