O desnudamento da culpa: reflexões sobre o teatro de Oliver




 

Foto: Jennifer Glass
    

A cena se abre e o corpo do ator se expõe. Literalmente. É através dele que se materializam as camadas de culpa que a sociedade, a compulsão heteronormativa e a própria família, ainda que amorosa, impõem sobre suas escolhas, orientações e transformações. "Culpa" não é apenas um título, mas a matéria-prima com a qual Oliver molda sua dramaturgia e encenação.

A tensão dramática se constrói na dialética entre a intimidade familiar e a exposição pública. A presença real dos pais em cena provoca um duplo espanto: primeiro, pela suavidade com que conversam abertamente sobre questões de gênero e identidade; depois, pelo simples fato de estarem lá, desnudados em sua vulnerabilidade, convertendo o espaço teatral em um domínio de escuta radical e acolhimento.

Se a concepção cênica não se vale de inovações formais, suas escolhas estruturam bem a narrativa e operam de forma eficiente. Os signos visuais se apresentam de maneira clara, sem enigmas ou excessos interpretativos, mas sua força reside justamente nessa acessibilidade.

Ao final da peça, conversando com diferentes espectadoras/es ouvi relatos de experiências distintas diante da obra, e essa reverberação é um de seus pontos mais potentes. Eu, por exemplo, gostaria de assistir à peça ao lado da minha filha de seis anos. Talvez algumas de suas perguntas fossem respondidas. Ao mesmo tempo, chorei junto à mãe de Oliver, quando ela expressa sua dor por não estar ao lado do filho no momento da mastectomia. A impossibilidade de cuidar, de cumprir o papel historicamente imposto às mulheres, se transforma em mais uma camada de culpa.

As projeções utilizadas no espetáculo têm um caráter mais informativo do que cênico, o que as torna esteticamente deslocadas do todo. Mas talvez essa desarticulação seja deliberada: uma metáfora de quem não se enquadra nos padrões de gênero normativos. Já a trilha sonora ao vivo cria um efeito sensível e comovente, principalmente ao ser tocada ao piano pelo pai e cantada pela mãe. Um gesto que pode ser lido como uma nova forma de cuidado: embalar, conduzir e tocar o ator, assim como nós, espectadoras.



Foto: Jennifer Glass


Os pais se mostram à vontade em cena, e o verdadeiro desvelamento não é apenas deles, mas do próprio Oliver. A coragem de se expor, física e emocionalmente, ganha ainda mais peso por ocorrer não apenas diante do público, mas principalmente diante de seus pais.

Uma das cenas mais marcantes ocorre logo no início, quando Oliver, nu, entrega um monólogo sobre corpo e sexualidade, estabelecendo o tom confessional e político da encenação. Outra imagem forte é a do ator pintando um quadro ao vivo, um dispositivo que poderia ser ainda mais explorado para ampliar a dimensão simbólica da obra.

"Culpa" se insere dentro de uma linhagem teatral que não apenas representa, mas provoca. É um teatro que, ao revelar sua própria vulnerabilidade, nos convida a fazer o mesmo.


Sinopse

Uma pessoa transgênero e seus pais fazem uma peça de teatro na qual rememoram momentos de vida juntos, antes da mastectomia masculinizadora. Através de imagens, refletem sobre as tensões do relacionamento. Sobre o grupo Dispêndio O grupo Dispêndio é formado por Oliver Olívia, Lucas Miyazaki e Antonio Salviano. Os três artistas, que trabalham de maneira colaborativa, criaram juntes o “Tríptico”, trilogia da qual faz parte “Culpa” (2023) – a terceira parte, precedida por “Não ela: o que é bom está sempre sendo destruído” (2020) – primeira parte, e “Ele” (2021) – segunda parte. Ficha Técnica Criação grupo Dispêndio Concepção e direção Oliver Olívia Dramaturgia e performance Oliver Olívia, Rosana Lagua e Eugênio Fernandes Trilha sonora ao vivo Eugênio Fernandes Dramaturgismo Antonio Salviano Assistência de direção, operação de luz e vídeo Lucas Miyazaki Iluminação e operação de luz Harth Bergman Consultoria técnica Rodrigo Gava Intérprete Libras Luccas Araújo Fotos Jennifer Glass Assessoria de imprensa Canal Aberto – Márcia Marques e Daniele Valério Coordenação de produção e comunicação Luiza Alves Produção executiva Dani Correia Coordenação administrativa Paula Malfatti Assistente de produção Veni Barbosa Agenciamento Marisa Riccitelli Sant’ana e Rachel Brumana Gestão Associação SÙ de Cultura e Educação

Serviço Culpa Duração: 60 minutos | Classificação indicativa: 18 anos De 7 a 23 de fevereiro de 2025 Sexta e Sábado, às 20h, Domingo, às 18h30. Ingressos: R$ 50,00 (inteira); R$ 25,00 (meia-entrada); R$ 15,00 (Credencial Plena) Sesc Belenzinho - Sala de Espetáculo I Endereço: Rua Padre Adelino, 1000 - Belenzinho – São Paulo (SP) Telefone: (11) 2076-9700 





Comentários

  1. As couraças que carregamos sobre o corpo nunca limitarão o que, de verdade, flui. Sobrecarregam a sobrevivência, mas ampliam a resistência de viver nossos dias incompletos.

    Transformar padrões leva uma vida inteira — luta simbiótica, a arte de se construir e reconstruir infinitamente, desfazendo-se dos nós.

    E, no fim, tudo isso há de nos ensinar a apreender sobre o incondicional: o amor.

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