Desde o primeiro momento, Exílio: notas de um mal-estar que não passa impõe uma inquietação intensa. A obra nos obriga a confrontar o peso de uma história marcada pela violência do exílio, não apenas como desterro geográfico, mas como condição permanente de corpos negros em um mundo que constantemente o desloca de seu próprio lugar. Sob a direção de Eugênio Lima, o Coletivo Legítima Defesa constrói uma experiência teatral onde o tempo e o espaço se embaralham, deixando a espectadora em uma espécie de suspensão, desvencilhando a narrativa de Abdias Nascimento e Augusto Boal.
A peça se destaca pela demarcação cênica que mantém todo o elenco visível o tempo todo, durante as passagens entre personagens e cenas. Embora essa técnica seja comum, ela confere uma plasticidade funcional e atraente ao espetáculo. A história é contada através de projeções, leituras de cartas, documentos e livros, que somados ao texto e à encenação, criam uma atmosfera quase documental. No entanto, o espetáculo opta por uma estética de conversação com o público, promovendo uma troca de apontamentos e reflexões. A trilha sonora é um grande diferencial, trazendo uma riqueza de ritmos, estilos e épocas que dão movimento à obra. Músicas como “Diário de um Detento” causam identificação imediata, pela sua popularidade e por nos remeterem a um tempo e um local, especialmente ao serem combinadas com a intertextualidade dos textos de Abdias e Boal. Esse entrelaçamento de vozes e histórias leva o público a momentos históricos e instigantes do teatro.
Particularmente, aprecio peças que adotam uma abordagem didática e até professoral, como é o caso da direção de Eugênio Lima. Ao contrário de muitos, penso que não há problema algum em a peça literalmente interromper a cena para nos ensinar. É também através dessas pausas que nos é apresentada a história do Teatro Experimental do Negro, cuja relevância é monumental para o teatro, para a sociedade e para reforçar a importância de não apagar a memória e a história das pessoas pretas. O contato com essa história no ambiente de estudos, inclusive, ainda é escasso. Na peça essa história é apresentada através de relatos documentais e dramaturgias que nos são apresentadas em projeção, encenação e música.
No fim, a obra nos apresenta uma questão provocativa ao refletir sobre quem conta as histórias negras hoje. A fala “Agora quem conta Zumbi somos nós” ressoa diretamente com Arena Conta Zumbi, espetáculo de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri dos anos 1960, que apresentou a vida de Zumbi dos Palmares. Naquele contexto, eram majoritariamente atores brancos interpretando essa narrativa histórica, algo que se tornou inaceitável no teatro contemporâneo. Exílio levanta essa reflexão para o presente: quem ocupa o espaço de fala e de criação sobre histórias negras? Essa questão é lançada no ar, provocando a reflexão que esperamos do bom teatro: mais do que dar respostas, a peça provoca. Como se, depois da aula que tivemos em cena, fôssemos convocadas a realizar nossa própria “lição de casa” na vida, na arte e na sociedade.
A movimentação em cena é precisa e bela, com destaque para o final, em que uma espada de São Jorge é empunhada, um símbolo de proteção e resistência, encerrando a peça com força e expressão visual que ressoam.
Sinopse:
Exílio: notas de um mal-estar que não passa é uma "transcriação da poética" do período de exílio vivido por Abdias Nascimento e sua relação com Augusto Boal. O espetáculo utiliza materiais de pesquisa do acervo do Teatro Experimental do Negro (TEN) e mistura textos e ideias de diferentes dramaturgos, incluindo Eugene O'Neill e Frantz Fanon, para discutir o processo de embranquecimento, a tragédia da negritude e a luta pela afirmação e resistência da identidade negra. A peça é composta por três partes e utiliza projeções, trilha sonora e uma abordagem metalinguística para envolver o público na construção da narrativa.
Ficha Técnica:
Direção, Direção Musical, Música e Desenho de Som: Eugênio Lima
Dramaturgia: Eugênio Lima e Claudia Schapira
Intervenção Dramatúrgica: Coletivo Legítima Defesa
Elenco: Walter Balthazar, Luz Ribeiro, Jhonas Araújo, Gilberto Costa, Fernando Lufer e Eugênio Lima
Atrizes Convidadas: Thaís Peixoto e Luaa Gabanini (em vídeo)
Videografia: Bianca Turner
Iluminação: Matheus Brant
Figurino: Claudia Schapira
Direção de Gesto e Coreografia: Luaa Gabanini
Assistência de Direção: Fernando Lufer
Consultoria Vocal: Roberta Estrela D'Alva
Cenotécnico: Wanderley Wagner
Engenharia de Som: João Souza Neto e Clevinho Souza
Fotografia: Cristina Maranhão
Design: Sato do Brasil
Produção: Iramaia Gongora Umbabarauma Produções Artísticas
Parceiros: Casa do Povo, Ipeafro, Instituto Boal, Editora 34 e Editora Perspectiva
Serviço:
Espetáculo: Exílio: notas de um mal-estar que não passaDatas: 18 de outubro a 10 de novembro, de quinta a sábado, às 20h, e aos domingos, às 18h
Local: Sesc 14 Bis - Rua Dr. Plínio Barreto, 285, Bela Vista - São Paulo
Ingressos: R$60 (inteira), R$30 (meia-entrada) e R$18 (credencial plena)
Duração: 90 minutos
Classificação: 16 anos
Telefone: (11) 3016-7700
Observações: No dia 27 de outubro não haverá espetáculo e, no dia 8 de novembro, haverá sessões às 15h e 20h
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