Enfrentei o medo e fui sozinha ao TUSP Maria Antônia. Eu sei, é perto do metrô, o acesso é fácil, as ruas são movimentadas. No entanto, nunca havia feito esse caminho sozinha. Mas, nesse processo de aprender a fazer coisas por conta própria e com a vontade sempre latente de espectar, me conduzi até esse algo novo. Lá estava eu, ouvindo um samba vindo da rua enquanto aguardava na fila e lia o programa do espetáculo pelo QR Code.
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Foto: Caio Oviedo |
E, ao entrar na sala, fui imediatamente abraçada pela energia da peça. Afeto não se contenta em apenas denunciar as violências que atravessam a vida das mulheres. A dramaturgia de Carla Zanini nos conduz a um território onde a dor se transforma em ação e onde a vingança não é apenas um desejo: é vivida, ainda que simbolicamente, em toda sua visceralidade. A história de Úrsula, Aisha e Bete — três mulheres unidas pela solidão, pela raiva e pelos traumas que carregam — é narrada com humor ácido e tensão crescente, prendendo a atenção da plateia até o último instante.
O texto é um labirinto. Vai se montando aos poucos, revelando camadas das personagens que nos surpreendem a cada cena. A viúva excêntrica que confunde uma mulher com sua enteada desaparecida; a jovem que carrega o trauma de um abuso recente; e a senhora misteriosa que guarda segredos inconfessáveis. Essas figuras não só resistem às suas violências, mas encontram um fio de redenção na fúria compartilhada. Com a música alta no clímax e o simbolismo brutal de “se alimentar da vingança”, a peça provoca uma catarse poderosa — como se, por instantes, cada espectadora ali fosse cúmplice dessa solução, tão absurda quanto necessária.
A harmonia entre Agnes Zuliani, Maria Fanchin e Teka Romualdo é outro ponto alto. As atrizes exploram com maestria a linha tênue entre a loucura e a lucidez, sustentando o ritmo frenético da narrativa e oferecendo performances marcantes. A direção, assinada por Angélica Di Paula e pela própria Carla Zanini, é precisa e bem resolvida, explorando o espaço cênico de maneira criativa e funcional. Os cenários, que se movem para acompanhar as mudanças de local, são um recurso inteligente que potencializa a trama sem excessos. Os figurinos de Muca Rangel enriquecem a estética da peça, contribuindo para a apresentação e formação das personagens. Revelam traços de suas personalidades antes mesmo que o texto se desenrole, adicionando camadas à visualidade. A iluminação de Maíra do Nascimento e a trilha sonora de Mini Lamers ampliam a tensão e criam o clima ideal para o desenrolar da história.
Afeto é o início da trilogia escrita por Carla Zanini, que também inclui Raiva e Coragem. A perspectiva feminista está no cerne dessa obra: mulheres quebradas que, em meio à violência e ao desamparo, encontram caminhos para enfrentar as estruturas que as oprimem. É raro encontrar no teatro uma peça que, além de expor o horror, ofereça uma saída, ainda que simbólica, para suas personagens. A vingança, aqui, é sentida na carne — e compartilhada com a plateia, que por dentro, ri e grita junto com elas.
O único ponto menos explorado é a vibração final, o sabor da vitória que sentimos, que acaba sendo breve. A figura masculina que aparece nas últimas cenas é pouco desenvolvida. Embora isso faça sentido em um teatro feminista, reduz a sensação de saborear plenamente aquela vitória. Assim, Afeto nos deixa com um gostinho de quero mais, enquanto nos brinda com uma sensação rara e poderosa: a impunidade, desta vez, jogando a nosso favor.
Por isso, indico que assistam à peça: uma experiência artística que revisita temas conhecidos, mas com ousadia, mostrando mulheres que viram o jogo. E não se preocupem — o trajeto até lá é tranquilo.
Sinopse
A peça conta a história de três mulheres desconhecidas que se unem através da falta, da raiva e da solidão. Úrsula, uma viúva excêntrica, confunde Aisha, uma mulher que acabou de ser abusada em um bar, com sua enteada desaparecida e as duas constroem uma relação fingindo ser quem elas não são. Quando a gata de Úrsula some, elas iniciam uma busca que termina no apartamento de Bete, uma senhora que parece esconder algum segredo.
Ficha técnica
Dramaturgia: Carla Zanini
Direção: Angélica Di Paula e Carla Zanini
Elenco: Agnes Zuliani (Úrsula), Maria Fanchin (Aisha), e Teka Romualdo (Bete)
Participação: Ricardo Henrique
Figurino: Muca Rangel
Trilha Sonora: Mini Lamers
Iluminação: Maíra do Nascimento
Assistência de produção: Julia Calegari - Ventania Cultural
Produção: Mariana Novais - Ventania Cultural
Idealização: DeSúbito Cia e Ventania Cultural
Serviço
Afeto - Uma história de amor (violenta e difusa) entre mulheres quebradas
Temporada: de 07 de novembro a 08 de dezembro de 2024
Dias e horários: Quinta, sexta e sábado, às 21h e domingo às 19h.
Local: Teatro da USP - Centro Maria Antônia
Endereço: R. Maria Antônia, 294 - e 258 - Vila Buarque, São Paulo - SP
Valores: Grátis - Retirada de ingressos a partir de 1h antes da apresentação
Classificação indicativa: 14 anos
Duração: 90 min
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