A Bailarina Fantasma: Subversão, Memória e Resistência
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Foto: Noelia Nájera |
Na peça-instalação A Bailarina Fantasma, a dramaturga Dione Carlos e a bailarina Verônica Santos colaboram para apresentar uma obra onde gênero e raça se entrelaçam, desconstruindo os estereótipos do balé clássico em uma performance profunda e crítica. Inspirada pela famosa escultura de Edgar Degas, A Bailarina de 14 Anos, a peça propõe ao público uma viagem por questões do apagamento histórico e da objetificação dos corpos femininos negros. A abordagem meticulosa de Dione coloca em perspectiva as violências invisíveis, físicas e simbólicas, que sustentam a indústria da dança, acentuadas pela construção de corpos moldados para a conformidade e o controle.
A obra de Degas é uma referência central: as esculturas feitas em bronze, que escurecem ao longo do tempo, remetem ao modo como a própria representação da bailarina de Degas foi erroneamente associada a uma jovem negra e, assim, foi alvo de ataques racistas. Esses aspectos da "perda de cor" e do "desgaste" são recriados na cenografia através de esculturas de cera derretidas, reforçando a efemeridade e a fragilidade de um corpo artístico que se desmancha, ao mesmo tempo que revela sua potência. A encenação de Wagner Antônio utiliza as sombras projetadas em formas e movimentos inusitados, um toque interessante que torna o espaço imersivo, dando um caráter onírico e reflexivo à narrativa.
Em cena, Verônica Santos demonstra sua habilidade técnica e expressiva ao transformar em som as histórias contidas nos "ruídos" do seu próprio corpo – estalos, dobraduras e movimentos que remetem às histórias de repressão e dor que a bailarina clássica experimenta desde a formação. Cada som é um registro corporal, carregado de significado e contexto histórico, revelando a trajetória da artista de forma contundente e ao mesmo tempo sutil.
A trilha sonora original de Natália Nery, executada ao vivo ao piano, é um ponto de destaque que sustenta a energia e a tensão das cenas, inspirando-se em ícones da música clássica e em vozes potentes como a de Nina Simone. Este diálogo entre som e movimento é essencial para a criação de uma cena que, dependendo da posição da espectadora no ambiente, revela leves alterações e nuances distintas. Essa liberdade para o público se mover gera uma dinâmica interessante, mas alguns ângulos de visão podem ser comprometidos, especialmente para pessoas com limitações de mobilidade, como grávidas e pessoas idosas.
O trabalho entre Verônica Santos e Dione Carlos, já conhecido do público, traz uma continuidade exitosa e um diálogo que valoriza a profundidade dos temas abordados. Dione constrói um texto forte, que explora as intersecções entre a obra de Degas e a vida de Verônica, elaborando o caráter subversivo de um "plano de vingança". Esta vingança, que a princípio aparece como uma forma de libertação poética e resgate de autonomia, se dilui um pouco com o tempo, talvez pela predominância textual na primeira parte da peça, que é seguida por movimentos e dança mais intensos. Essa estrutura poderia comprometer o ritmo do espetáculo, mas a presença cênica e a técnica apurada de Verônica mantêm o público absorvido, compensando qualquer possível oscilação de ritmo.
A peça conclui com uma saída triunfal de Verônica, que recebe os aplausos no corredor – uma celebração à sua presença grandiosa e à sua habilidade em transitar entre potência, vulnerabilidade e resistência em cena. A Bailarina Fantasma é uma obra corajosa que convida o público a refletir sobre a história e os desafios enfrentados pelas mulheres pretas na dança, ao mesmo tempo que celebra a capacidade de resiliência e autonomia dos corpos em sua dança insurgente.
Sinopse
A peça-instalação A Bailarina Fantasma foi criada a partir da icônica e polêmica escultura francesa A Bailarina de 14 Anos, do escultor Edgar Degas, em fricção com os relatos autobiográficos da bailarina brasileira Verônica Santos. Com dramaturgia inédita de Dione Carlos, o espetáculo revela um corpo fraturado por violências físicas e simbólicas e também por tentativas de apagamento da visibilidade de uma bailarina clássica negra. A obra propõe uma espacialidade imersiva onde a performer e a dramaturga ritualizam um diálogo íntimo e, diante do público, elaboram um plano de vingança.
Serviço A Bailarina Fantasma
Data: 17 a 31 de outubro de 2024, às quartas e quintas, às 20h30, e, de sexta a domingo, às 18h e às 20h30. No dia 31 também haverá sessão dupla às 18h e às 20h30.
Local: CCSP - Centro Cultural São Paulo | Espaço Cênico Ademar Guerra | Rua Vergueiro, 1000 – Paraíso – São Paulo – SP
Ingresso: Gratuito
Duração: 75 minutos
Classificação: 18 anos
Acessibilidade: Todas as sessões contarão com acessibilidade em Libras – Língua Brasileira de Sinais.
Ficha Técnica
Idealização e Direção de Produção: Fernando Gimenes
Produção: Plataforma – Estúdio de Produção Cultural
Dramaturgia: Dione Carlos
Encenação: Wagner Antônio
Pianista: Natália Nery
Equipe Técnica Performativa: Laysla Loysle, Ijur Sanso, Lucas JP Santos
Designer Gráfico: Murilo Thaveira
Fotos: Helton Nóbrega e Noelia Nájera
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