Sobre Nora, Persona, Depois do Ensaio, Espectadoras e Outras Culminâncias
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Foto André Voulgaris |
NORA
"Depois do ensaio, Nora, Persona" é uma encruzilhada. Um momento de duração de quase quatro boas horas. Um espaço-tempo para retomar pensamentos, rever subjetividades e pensar coletivamente: o que mudou? O que não víamos em Ibsen e Bergman, o que eles não viam? “Racializar os clássicos” é uma das propostas do diretor Zé Fernando para esta montagem. Seguimos acomodadas na cadeira do teatro, observando as mudanças em cena, uma revisão dramatúrgica, uma nova proposta para pensar personagens e suas relações. Mudamos no palco, aguardando a mudança efetiva. A não subjetiva. A social. As histórias se contornam, mas não se repetem.
Uma casa de bonecas arrojada. Ibsen poderia esconder muitas coisas nas entrelinhas: dinâmicas de relações, motivações internas das personagens, objetivos ocultos… talvez cada época histórica nos aponte um caminho. Nesta montagem, o caminho celebra a relação sexual, o questionamento de gêneros, o relacionamento inter-racial e as diferenças sociais. Iniciar A Casa de Bonecas com uma relação sexual nos aponta outra Nora. Talvez uma Nora que esperássemos encontrar só no final, quando a “Cotovia” se coloca em liberdade. Nora, representada por uma atriz preta, dá ímpeto aos questionamentos. A emancipação feminina é apenas a liberdade econômica? Ou só a sexual? Abrimos mão de uma coisa e perdemos a outra? Ou Nora pode querer e ser (quase) tudo?
PERSONA
Após o intervalo, nos despedimos de Ibsen e Nora para encontrar as personagens de Bergman. Enfermeira e atriz em convivência na busca pela cura. Em determinado momento, não sabemos quem está curando quem. Há o dispositivo da briga, da inveja, do não dito, do escondido. Ao mesmo tempo, há a cumplicidade, os segredos tão intimamente guardados se revelando e uma cumplicidade que se confunde nas personalidades. Entrelinhas que podemos ler na presença das atrizes, duas mulheres pretas, o que diminui a tensão de servidão e aumenta a potência do que as duas são. Estão ambas acima do que foi vivido por aquelas; neste momento só há esta relação. E com o brilhantismo da atuação das atrizes, um deleite que nos acompanha durante toda a peça. A atuação delas é uma arte rara.
DEPOIS DO ENSAIO
A peça se entremeia entre a encenação pós-ensaio e o ensaio das peças. Nesses momentos, temos o ápice da apresentação. A analises sobre vida e obra se misturam e se confundem. As conversas são profundas, analíticas e, por vezes, narradas como rubricas, como se os atores e atrizes (também personagens) escrevessem suas vidas através de uma peça de teatro. Entendemos seus motivos, suas escolhas, suas personalidades. Confesso que eram minhas cenas favoritas. Diálogos intensos e profundos, como se lêssemos um bom livro. Ou um livro que tentasse, sempre em vão, nos ensinar maneiras de viver. De amar, de driblar o tédio e de fazer teatro. Com uma mise-en-scène menos arrojada do que nas cenas anteriores, as falas e interpretações dão o tom. Nada em vão. O que poderia soar excessivo ou cansativo nos mostra outras facetas da atuação e da direção, as reais, não da metalinguagem.
AS ESPECTADORAS
Em determinado momento, algumas espectadoras sentadas atrás de mim começaram a rir sonoramente da conversa que se passava em cena. O riso era engraçado, mas ao mesmo tempo incômodo; elas riam em cima da fala dos atores e atrizes, fazendo com que perdêssemos parte dos diálogos. Acontece, faz parte da experiência do convívio teatral. Inclinei minha cabeça ligeiramente para trás, no lado oposto às risadas, para ver de soslaio a reação da outra parte do público. Uma outra mulher agarrou meu olhar como se esperasse por aquele momento para desabafar e disse (baixo, mas suficientemente audível): “Não sei pra que rir tanto! É uma cena reflexiva, não cômica!” Naquele momento, segurei o riso, mas não a surpresa. A moça em questão queria impor sua visão sobre a peça ao restante da plateia. Minha vontade foi de virar a cadeira, dar as costas ao que acontecia no palco e observar a nova cena que se desenrolava atrás de mim. Com certeza a peça era boa, mas eu poderia voltar qualquer dia para assistir, enquanto a cena que acontecia em paralelo nunca mais se repetiria. As gargalhadas nos acompanharam durante toda a apresentação, talvez com mais força e ênfase. A moça que analisava a peça durante a peça esperou seu fim para continuar reclamando - sozinha, mas para quem quisesse ouvir. Será que, pela situação de risos e reclamações, alguém teve uma visão alterada sobre o que estava sendo apresentado?
PONTO CULMINANTE
As câmeras em cena acompanham as montagens do diretor Zé Fernando há tempos. As projeções de diferentes pontos de vista são mostradas em telas. O audiovisual contracenando com o teatro. A novidade em “Depois do ensaio, Nora, Persona” é o uso do chroma key, montando cenários e indicando espaços não vistos no palco. O recurso torna a peça de longa duração mais dinâmica, sem tempo de ficar cansativa e despertando nossa atenção enquanto provoca deslocamentos de espaço e tempo. Embora inovadora, para mim, não é o ponto culminante da peça, que continua sendo o brilhantismo da atuação das atrizes Ellen Reina, Izabel Lima e Thaina Muniz, e a adaptação e direção de José Fernando Peixoto de Azevedo.
Sinopse
Depois do ensaio, Nora, Persona: três ensaios sobre a falta e as formas do terror que atravessam processos de mobilidade social na dinâmica interracial disso que ainda chamamos sociedade. Primeiro, o teatro, e o que nele se faz na medida em vamos nos inventando a nós mesmos; depois, os confrontos da cena em sua demanda violenta de atualidade sem recuos; por fim, o trabalho de cura sobre os corpos que não esquecem suas dores, mas que as vão mapeando, no esforço de não se perderem em meio a elas, numa reiteração sem fim.
Ficha Técnica
Textos: Ingmar Bergman (Depois do ensaio, Persona) e Henrik Ibsen (Casa de Boneca)
Tradução: Karl Erik Schøllhammer (Depois do ensaio, Casa de Boneca, Persona) e Aderbal Freire-Filho (Casa de Boneca)
Dramaturgia, dispositivo de cena e de imagem, direção geral: José Fernando Peixoto de Azevedo
Elenco: Daniel Tonsig, Castilho, Ellen Regina, Filipe Roseno, Izabel Lima, Rodrigo Scarpelli, Thainá Muniz e Victor Mota
Participação especial: Kendrick Lamar de Andrade
Direção técnica e de imagem, edição e videografia: André Voúlgaris
Direção de arte (cenografia e figurino): Beatriz Barros e Maíra Sciuto
Direção musical, composição de trilha sonora e cenário sonoro: Muato
Desenho de luz: Denilson Marques
Assistente de direção: Diego Roberto
Assistente de Direção Musical: Victor Mota
Práticas do corpo: Tarina Quelho
Direção de Movimento: Tarina Quelho e Castilho
Facilitador vocal integrativo: Cauê Ferreira
Operação de câmera e imagens: Fredo Peixoto
Cenotecnia: Taller Tropical
Assistente de iluminação: Maria Fernanda Assumpção
Fotografias: André Voulgaris e Beatriz Barros
Assessoria de imprensa: Canal Aberto – Marcia Marques
Produção: Corpo Rastreado – Gabi Gonçalves e Anderson Vieira
Serviço
Depois do ensaio, Nora e Persona
Com SOCIEDADE ARMINDA e direção de José Fernando Peixoto de Azevedo
De 24 de maio a 23 de junho de 2024
Quintas, sextas e sábados, às 19h. Domingos e feriados, às 17h.
Quinta, 30/05, às 17h e quarta, 19/6, às 19h.
Duração: 230 minutos, com intervalo
Recomendação: 14 anos
Sesc Avenida Paulista - Local: Arte II (13º andar)
Av. Paulista, 119 - Bela Vista, São Paulo - SP, 01311-903
Ingressos: R$50 (inteira), R$25 (Meia) e R$ 15 (Credencial plena)
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